Introdução ao Livro de Samuel O homem governa?
Na Bíblia hebraica, os livros de I e II
Samuel formam um único livro, e, neste estudo, vamos tratá-lo desta
maneira. O livro de Samuel faz a ponte entre o período dos juízes e o
estabelecimento da monarquia em Israel, abrangendo os reinados de Saul e
Davi, seus dois primeiros reis.
Os acontecimentos narrados se situam
entre a metade do século XI a.C. até o século X a.C., porém, alguns
estudiosos estabelecem a redação do livro muito tempo após os fatos
ocorridos, mas, temos boas razões para dizer que a redação é
contemporânea aos acontecimentos descritos no livro, uma vez que a corte
dispunha de um arquivista real e de um secretário (cf. 2 Sm. 20:24-25).
Os fatos ocorridos com Samuel e Saul
abrem o livro de Samuel, que se fecha com a compra feita por Davi do
campo de Araúna, que seria o futuro terreno onde Salomão, seu filho,
edificaria o Templo de Jerusalém. O enredo principal fica por conta de
Davi, que luta para constituir e manter a nação de Israel.
Neste período, as nações mais poderosas
do Antigo Oriente Médio, Egito e as nações mesopotâmicas, não estavam em
condições de combates externos. Por isso, alguns povos de menor
expressão no cenário palestino, puderam avançar em busca de novos
territórios. Foi nesta ocasião que os filisteus atacaram Israel de forma
consecutiva, sendo combatidos pelo rei Saul, que morreu em uma das
batalhas, e foram expulsos por Davi. A partir daí Davi conseguiu
expandir as fronteiras do reino de Israel na região Palestina por meio
de batalhas e tratados.
Estrutura de Samuel
O livro de Samuel está dividido da seguinte maneira:
- Histórias de Samuel – 1 Sm. 1:1 – 4:1a
- Histórias da Arca da Aliança – 1 Sm. 4:1b – 7:2
- A instituição da monarquia e reinado de Saul – 1 Sm. 7:3 – 15:35
- A Ascensão e reinado de Davi – 1 Sm. 16:1 – 2 Sm. 5:10
- Os sucessos de Davi e a consolidação do reinado – 2 Sm. 5:11 – 9:13
- Os fracassos de Davi e a dificuldade de manter o poder – 2 Sm. 10:1 – 24:25
Os primeiros capítulos tratam da
apresentação de Samuel, a condição deplorável do período dos juízes (Eli
e seus filhos – I Sm. 2:12ss) e marca a transição entre este período e a
monarquia em Israel. Este período termina com a tomada da Arca da
Aliança pelos filisteus. No mundo antigo a vitória de um exército sobre
outro indicava o poder e a vitória do deus do exército vencedor sobre o
deus do exército perdedor. Logo, a conclusão era que Dagom, o deus
filisteu, era mais poderoso do que Javé, o deus de Israel. Os capítulos 5
e 6 de I Samuel registram fatos que desmentem essa teoria, pois, mesmo
capturada, a Arca ainda representava a presença de Javé, e as pragas
enviadas sobre o povo filisteu mostraram que, embora o povo de Israel
tivesse perdido a batalha, Javé não fora derrotado pelos filisteus. A
narrativa com o retorno da Arca faz menção Êxodo. A Arca permaneceu em
um alojamento temporário durante todo reinado de Saul, e só voltou a ter
uma posição de destaque quando Davi a levou para Jerusalém (2 Samuel
6), sugerindo que, tanto Samuel quanto Saul são personagens que indicam a
transição para o período de ouro de Israel com o rei Davi, além de
indicar a importância da Arca da Aliança.
Samuel atuava como profeta e sacerdote,
além de juiz de Israel. Mas, apesar do poder político que possuía, não
era rei. Após a vitória sobre os filisteus (I Sm. 7), e a reconquista
dos territórios que haviam sido perdidos, cresce o clamor popular por um
rei, pois o povo entendeu que nem Samuel, já idoso, nem seus filhos
poderiam manter Israel na posição que ocupava naquele momento. A alusão à
frustração de Samuel com relação à nomeação de um rei pode indicar que
ele se considerasse apto à esta posição (I Sm. 8:4-5).
Nas narrativas da monarquia unida (Saul,
Davi e Salomão) o livro de Samuel apresenta como estrutura narrativa a
função do rei, suas qualidades e sucesso e, por fim, seus fracassos e
conquistas. No caso de Saul, ele é retratado muito mais como um juiz do
que como rei, de acordo com o episódio ocorrido em Jabes-Gileade (I Sm.
11). Porém, Saul não tinha firmeza espiritual nem um conhecimento
consistente de Javé, afinal mal haviam saído dos quatrocentos anos de
apostasia no período dos juízes. Entretanto Deus esperava de um rei
muito mais do que de um juiz, e Saul não cumpriu essas exigências.
O capítulo 12 conclui que, o povo, ao
escolher para si um rei, estava, na verdade, rejeitando o governo do
próprio Deus. O povo pensava que a ausência de um rei os faria perder as
batalhas pela permanência na terra prometida.
O texto mostra que, independente das
falhas e fracassos de Saul, Deus estava disposto a dar a ele uma chance
de desenvolver seu potencial. Isso nos ensina que Deus executa seus
propósitos a despeito das falhas das pessoas que ele chama e convoca.
Os capítulos 13 a 15 vão apontar as
falhas de Saul, que são anteriores ao seu relacionamento de Davi. O
autor tem esse cuidado para mostrar que não foi Davi quem desqualificou
Saul, mas ele próprio. O caso do sacrifício oferecido por Saul demonstra
sua incapacidade de tomar decisões sábias em momentos difíceis,
qualidade de um verdadeiro rei. Ao fazer o sacrifício Saul agiu conforme
o modelo monárquico cananita, isto é, onde o rei também possui o ofício
de sacerdote.
Os capítulos 14 e 15 continuam revelando
a incapacidade de Saul de tomar decisões, e isto levou Deus a mandar
Samuel ungir Davi como futuro rei de Israel. Daqui para frente a
narrativa se volta para Davi e mostra como ele, mesmo sendo predestinado
ao reinado, não tomou o trono de Saul. A narrativa apresenta três
fatores para comprovar isso:
- A hostilidade de Saul – Foi sempre Saul quem iniciou os confrontos com Davi.
- A ausência de vingança por parte de Davi – Davi teve duas oportunidades claras de matar Saul, mas não o fez (I Sm. 24 e 26).
- As afirmações de inocência de Davi no texto – Estas declarações são feitas por: Samuel (I Sm. 28:16-18); Abigail (1 Sm. 25:30); Jônatas (I Sm. 19:4-5, 20:14-15, 22:16-18); e pelo próprio Saul (I Sm. 20:31, 24:16-22, 26:21-25)
Os sucessos de Davi são descritos em II
Sm. 5 – 9. Este trecho mostra a instituição de Jerusalém como nova
capital quando a Arca da Aliança é trazida e restaurada à sua função.
Este texto mostra como Davi firmou o trono de Javé em Jerusalém
(capítulo 6) e, como Javé firmou o trono de Davi (capítulo 7) por meio
da sua aliança.
Os capítulos 10 a 20 focaliam a família
de Davi e como seu pecado causou a tragédia que se instaurou até o fim
de sua vida. Dificilmente pode ser casual a perda de quatro dos seus
filhos (seu filho com Bate-Seba, II Sm. 12; Amon, 2 Sm. 13; Absalão, II
Sm. 18 e Adonias I Rs. 2) após Davi ter decretado a restituição
redobrada quando da acusação apresentada pelo profeta Natã a Davi.
A aliança e a unidade do reino estavam
em perigo por consequência dos erros de Davi, mas a narrativa mostra que
Deus, apesar dos erros de Davi, ainda o apoiava, mesmo que outras
pessoas estivessem contra ele.
Os capítulos 21 a 24 focalizam a ação
divina contra Davi por meio de fome e praga, mas ainda sim mostram como
Deus o apoiou, deu-lhe vitória (II Sm. 22) e firmou sua aliança com ele
(II Sm. 23:1-7).
Propósito e conteúdo
Apesar da ênfase histórica, o principal
objetivo do livro de Samuel é teológico, isto é, ele não foi redigido
para documentar a história propriamente dita, mas para mostrar como se
deu a aliança com o Rei Davi e como a autoridade divina é obedecida ou
desobedecida, bem como suas consequências.
A arca da aliança
A arca da aliança era o objeto religioso mais importante de Israel, pois representava a presença de Deus no meio do seu povo.
Os ídolos foram proibidos na religião
israelita para evitar-se a manipulação da divindade pelas pessoas,
entretanto a arca, por vezes, passou pelo mesmo problema. Lemos no
relato de I Samuel 4 que os filhos de Eli tentaram usá-la para esta
finalidade, pois, em tese, a divindade israelita não se deixaria
capturar pelos inimigos. Javé, entretanto, não se deixa manipular, então
a arca não foi capturada, mas deixou Israel (I Samuel 4:21).
A autonomia da arca, que operava somente
por ordem de Javé, foi provada quando ela retornou a Israel numa
carroça sem condutor (I Samuel 6:10-16). A arca não deveria ser tratada
apenas como uma relíquia, os episódios da praga entre os filisteus (I
Samuel 5), das mortes em Bete-Semes por sua profanação (I Samuel
6:19-20) e o castigo de Uzá (II Samuel 6) mostram que Javé se
manisfestava por meio da arca independentemente de qualquer ritual
humano.
Por isso, sua instalação em Jerusalém,
por ocasião da conquista de Davi, não foi um mero ritual, mas sim a
aprovação divina do reinado de Davi.
O Salmo 78 dá detalhes sobre a teologia da arca.
Monarquia
A monarquia em Israel era uma premissa divina (Jz. 8:23; I Sm. 8:7). O rei deveria manter a justiça, o padrão ético do decálogo.
No período dos juízes Javé convocava um
libertador sob semanda para executar este propósito, porém o povo
considerava a monarquia mais durável, desta maneira não haveria a
necessidade de esperar um próximo libertador.
Não havia nada de errado em pedir um
rei, pois era propósito de Javé que isso acontecesse (Dt. 17:14-20).
Porém, foi a espectativa do povo de achar que o rei teria sucesso onde
Deus não tivera que recebeu sua reprovação de Javé.
Veja em I Samuel 8:20 a perspectiva do
povo sobre o primeiro rei de Israel e compare com o relato apresentado
em I Samuel 17. A conclusão é que o rei não lutou as batalhas pelo povo,
mas o Senhor venceu a batalha pelas mãos de Davi. Inclusive a
recompensa que Saul oferece para quem lutar prova sua indisposição à
luta.
O verdadeiro rei entendia que quem luta e
vence é o Senhor, portanto a monarquia não substituía o governo de
Deus, mas representava sua própria atuação no meio do povo.
A aliança davídica
A aliança de Javé com Davi é um tema
imporante no Antigo Testamento, e suas implicações o transcendem, por
isso temos de analisar três aspectos dessa aliança:
a) A promessa de Javé a Davi – A
promessa de Javé feia a Davi é semelhante à promessa feita a Abraão. As
tabela abaixo demonstra isso:
Promessa | Abraão | Davi |
Tornar o nome famoso | Gn. 12:2 | 2 Sm. 7:9 |
Dar terra | Gn. 12:7 | 2 Sm. 7:10 |
Segurança | Gn 12:3 | 2 Sm. 7:10-11 |
De acordo com a tabela acima verificamos
que a promessa de Javé a Davi é englobada pela promessa feita a Abraão,
havendo uma espécie de subordinação daquela a esta.
A partir de 2 Sm. 7:12 temos uma
distinção da promessa feita a Davi, quando menciona-se que o descendente
de Davi seria seu sucessor, ainda que haja certa semelhança com a
promessa de descendentes feita a Abraão. A descendência de Davi teria a
oportunidade de ocupar o trono sucessivamente.
Embora a Bíblia mencione que esta
aliança seria eterna, fica claro que, no caso da quebra desta aliança
por parte do homem Deus também estaria desobrigado de cumprir sua parte.
Para outros exemplos do uso do termo “para sempre” veja os seguintes
textos: 1 Sm. 1:22; Dt. 15:17; Jr. 17:4. A promessa continha o aspecto
da disciplina e não da rejeição como fora com Saul (2 Sm. 7:14). O texto
de 2 Sm. 7:29 demonstra que Davi entendeu os termos da aliança quando
pediu que Javé abençoasse sua sua descendência continuamente.
b) A natureza da aliança – O texto de 2
Samuel 7 não impõe condições à aliança davídica, mas observamos em
outros textos que esta aliança estava sujeita à renovação de tempos em
tempos, apresentando um caráter condicional: 1 Reis 2:4; 1 Reis 6:12; 1
Reis 9:4-5. Em 1 Reis 8:25 Salomão declara ter conhecimento da cláusula
condicional da aliança feita a Davi. Este textos comprovam que o termo
“para sempre” deve ser entendido como indefinido, isto é, por tempo
indeterminado. Os registros bíblicos nos dão conta de que a promessa a
Davi foi cumprida, mas, dali paa frente caberia a seu filho cumprir sua
parte neste acordo.
c) Os impactos da aliança – A aliança
foi anulda com a desobediência de Salomão? O texto de 1 Reis 11:32-39
trata sobre este assunto. Aqui vemos a bondade e graça de Deus, pois
Salomão poderia ter seu reinado terminado, mas Javé, por amor a Davi,
permitiu que Salomão fosse até o fim. Em 1 Reis 11:38 um acordo
semelhante foi feito com Jeroboão, e aqui temos a reafirmação da
promessa feita a Davi (ver 2 Crônicas 21:7 e Salmos 89) e o despontar da
esperança messiânica, que traria a restauração da aliança davídica.
Jeremias 33:14-22 é o texto no Antigo Testamento que tratará de forma
mais clara sobre este tema: o messias que trará a renovação da aliança
davídica. Durante todo este tempo não houve mais um rei davídico no
trono de Israel, e o Novo Testamento reconheceu em Jesus o descendente
de Davi que traria esta renovação, conforme Mateus deixa claro em seu
evangelho. Ao satisfazer as condições que o Messias deveria ter, Jesus
abre o caminho para o reino que será eterno.
Avaliação de Saul
Saul é conhecido em seu reinado,
especialmente durante o destaque que o texto dá a Davi, como alguém
invejoso e atormentado. Entretanto nem sempre el foi assim. A Bíblia o
descreve antes de seu reinado como alguém tímido, sincero e agradável,
ou seja, o tipo de pessoa que todos escolheriam para ser rei.
Em 1 Samuel 10:10 temos a informação de
que o Espírito do Senhor o capacitou para reinar em Israel, contudo, em 1
Samuel 16:14 o Senhor retirou seu Espírito de Saul, que perdeu a
capacidade divina de governar ao não tomar boas decisões e não preservar
a justiça.
Porém, antes mesmo do Senhor ter tirado
seu Espírito de Saul, podemos verificar que nem tudo estava bem com ele,
pois, mesmo sendo sincero, sua espiritualidade era superficial. Ele
mostrou isso quando desconsiderou a função de Samuel (1 Samuel 9:10-15).
Temos este veredito também no episódio que ele oferece o sacrifício
antes da batalha (13:8-12), e no qual deixa de executar o rei Agague
(15:13-35).
Quando, ao final de sua vida, Saul
recorre à medium de En-Dor (1 Samuel 28), fica provado que ele nunca
entendeu alguns princípios fundamentais da teologia hebraica.
Provavelmente Saul jamais entendeu que Javé era difierente dos deuses
cananeus, que se deixavam manipular pelo sistema religioso. Ele não era
diferente em nada de um israelita comum desta época, embora o rei, como
representante de Javé ao povo, deveria ser diferente.
Avaliação de Davi
A tendência natural ao lermos os relatos
bíblicos é desprezar a Saul e, em consequência desta reprovação,
aprovar incondicionalmente a Davi. É certo que a percepção teológica de
Davi era muito mais aguçada que a de Saul, contudo devemos saber que
Davi cometeu erros gravíssimos.
Davi deixava-se levar pelo momento, sem refletir em suas consequências. A tabela abaixo ilustra bem este fato.
Pecado | Consequência | Referência |
Mentira | Morte de inocentes | 1 Samuel 21-22 |
Raiva | Risco de assumir o trono | 1 Samuel 25 |
Conspiração internacional | Morte de civis | 1 Samuel 27 |
Cobiça | Adultério e Assassinato | 2 Samuel 11 |
Negligência paterna | Desunião familiar | 2 Samuel 13 e 14 |
Orgulho | Devastação da nação | 2 Samuel 24 |
A despeito de todos esses erros, a
Bíblia mostra o quanto Davi amava a Deus e fora leal com ele. A Bíblia
mostra seu profundo arrependimento e o quanto ele prezava as leis de
Javé. Por isso a opinião equilibrada do escritor dos livros de Samuel
sobre Davi é prova de que estamos todos sujeitos ao pecado e à falta de
bom senso, porém a devoção e o amor de Davi a Javé e sua Lei eram o seu
diferencial.